quarta-feira, 14 de maio de 2014

USHUAIA - ARGENTINA - Entre Amigos no Fim do Mundo – Parte 1


Chegar ao Fim do Mundo é especial. Decidir ir ao Fim do Mundo é ousado. Eu, particularmente, precisei de um motivo forte para encarar essa aventura e tenho que confessar: foi uma das experiências mais intensas que tive. Quanta diferença entre o calor da África e o frio da Patagônia...ir aos extremos em alguns momentos da vida é também uma necessidade (em qualquer aspecto). Então, fui à Patagônia! E que lugar exuberante situado no final de tudo, no extremo da América do Sul, parte do Chile e da Argentina. Sabe aquela língua quase lambendo a Antártica? É lá mesmo!  Aqui o ser humano tem certeza da sua insignificância diante de uma imensidão quase inóspita (pelo menos aparentemente). A posição ideal é ajoelhar, pois é como se estivéssemos entrando na casa de Deus, pela porta da frente! Para entender essa região é importante ter uma noção sobre a história de povos indígenas que a habitavam e porque atraía tanta gente numa época tão improvável. As questões vinculadas à Patagônia e sua exploração/colonização refletiram no sul do nosso país, cuja história é tão pouco conhecida. Quase não lembramos que somos parte da América Latina, pois nossa história é bem diferente dos nossos vizinhos que tiveram uma colonização exterminadora. E então conhecemos o Edivan, um gaúcho corredor, amante de história e que, para nossa agradável surpresa, deu-nos uma contextualização impressionante sobre as incursões Argentinas e Europeias, cujas conversas giravam em torno das nossas diferenças e sempre regada a um bom vinho que nos levava a uma viagem no tempo e na geografia...e ele escreveu para nós....
Os conflitos indígenas por Edivan Ferreira
“Ano de 1874 quando Nicolás Avellaneda assume a presidência da
Argentina e começa uma gestão na busca do desenvolvimento econômico a partir de incursões para a tomada de terras. Essa época ficou marcada pelas “Campanhas do
Deserto” do Ministro da Guerra, Julio Argentino Roca, nas quais as tropas avançaram sobre os indígenas que viviam no sul do país, liberando milhões de hectares para a instalação de estâncias. Seu governo deu apoio total à imigração europeia (principalmente a italiana) e investiu na educação primária, proporcionando ao país ter a população com mais anos de educação formal da América Latina. Depois, assume Julio Argentino Roca (ex-Ministro da Guerra), cujo primeiro governo durou de 1880-1886 e com 37 anos de idade foi o mais jovem presidente Argentino em toda a sua história. A prosperidade da nação continuou durante o seu mandato. Conduziu a política da purificação étnica,  vencendo a resistência dos povos Mapuches e causando a morte de 20.000 índios. A população indígena quase desaparece. Nesses governos, onde a Argentina entra num longo período de abundância e prosperidade econômica, fica marcado pelos conflitos entre os povos indígenas que habitavam as regiões dos Pampas e da Patagônia. Julio Argentino Roca, que começa a exterminação ainda no cargo de Ministro da Guerra com a Campanha do Deserto, intensifica os ataques com sua estratégia era “dominar, expulsar ou exterminar” os indígenas. Conflito esse que foi até o final do seu governo. De fato, os europeus não descobriram a América, eles a invadiram. Nestas terras havia populações indígenas desde a Terra do Fogo até o Alaska e foram dominados, dizimados e expulsos das suas terras, utilizando-se da ideia de catequização, perdendo a identidade e os poucos que ainda sobrevivem estão reclusos em reservas ou na periferia das cidades.”
Devidamente contextualizada a história....vamos a Ushuaia, capital da Patagônia Argentina e da Província da Terra do Fogo, composta pela Antártica e Ilhas do Atlântico Sul (onde estão as Malvinas).  A primeira sensação ao chegar é de cortar n’alma. A paisagem é uma obra de arte difícil de acreditar na sua veracidade. A cordilheira emoldura o horizonte, cuja neve nos picos das montanhas reflete e ressalta com muito mais intensidade o azul do céu e o verde levemente avermelhado pela chegada do outono.  Além desse contraste que fere os olhos, a pele sente o vento como uma navalha a golpes rápidos no rosto. Foi assim que a percebi: misto de dor e prazer.  Ultima cidade antes de chegar à Antártica, conhecida como Fim do Mundo ou Terra do Fogo, mas que para mim parecia ser o começo de tudo e que o mundo é que estava de cabeça para baixo. O nome Ushuaia vem do indígena Yagan: ushu + aia (baía profunda) e há mais de 11 mil anos já tinha sido descoberta por nômades/índios (como os Onas e Yaganes) que, mesmo num clima quase insuportável, se vestiam minimamente, buscavam alimentos na água, famosos por suas canoas e fogueiras. Foi aí que descobri porque se chama Terra do Fogo: atribuído por Fernão de Magalhães quando explorava a região e se deparou com fogo sobre a costa do estreito (que hoje leva seu nome: estreito de Fernão de Magalhães) e que eram fogueiras...foi batizada como “Tierra del Fuego(1500). E quem nasce em Ushuaia é Fueguino.A cidade foi habitada de verdade (1869) por pastores anglicanos que vieram para catequizar os índios, mas, como foi tão bem descrito por Edivan, à medida que o homem branco tomava posse da região, os índios iam sendo dizimados ou pelas doenças trazidas pelos diversos povos europeus ou pela devastação das guerras e confrontos. Em 1930 quase toda a população indígena havia desaparecido.  Então veio a construção do famoso presídio no início do séc. XX que funcionou por quase 50 anos (1902 a 1947) e que, num paradoxo social, trouxe o desenvolvimento de infraestrutura e econômico para a cidade, ao mesmo tempo em que a população se mantinha temerosa com um volume de presos no local quase igual à quantidade de habitantes. Não tardou para ser fechado e transformado em um museu, parte do Museo del Fin del Mundo. Ushuaia é rica em tudo e tem um povo muito educado, receptivo e nacionalista que ainda mantém a memória viva sobre a questão das Malvinas como uma conquista necessária. Com toda essa miscigenação é bastante internacionalizada em sua cultura e hábitos. E por ser uma cidade muito jovem, suas raízes e sentimento de pertencimento ainda está se construindo na descoberta de sua história, o que me lembrou de Brasília e talvez o que me fez sentir quase em casa (se não fosse o clima, claro!).  
Onde ficar e o que fazer ?
O Hotel Costa Ushuaia é bem adequado para quem quer contato direto com a natureza. Fica a 10 minutos do centro da cidade (de carro) e de frente para a baía. É muito agradável percorrer as proximidades e se perder na imensidão do céu azul e do frio cortante.  O Museu do Fim do Mundo é uma parada providencial, dedicado aos povos indígenas, a natureza, a história local e aos naufrágios ocorridos nas proximidades da cidade. A cidade também oferece lugares muito agradáveis e de uma rica gastronomia. A tarde se perde e faz-se necessário perambular pela San Martin, experimentar a torta de maçã do Andino  ou experimentar uma das receitas de café e chocolate exóticas do Isla de Chocolat. Para passar o tempo admirando e conhecendo mais a história, El Almacén de Ramos Generales quase de frente para o Porto.
Comer é uma diversão garantida e a pedida certa é a centolla (um caranguejo típico da região) que tivemos o prazer de experimentar no El Gustino e no Vilaggio e para prestigiar a cozinha chilena, tem que ir no Chiko  ...tudo isso regado ao vinho do Fim do Mundo que já era parte desses pequenos prazeres.
Canal de Beagle



O Canal de Beagle é obrigatório. Não tem como ir a Ushuaia e não fazer esse passeio. Ele faz a fronteira entre o Chile e a Argentina e do porto saem os barcos que contornam as ilhas onde podemos ver e fotografar os lobos marinhos, pinguins, cormoranes e diversos pássaros. O nome faz referência ao navio britânico HMS Beagle que fez 2 missões até o extremo da América do Sul, sendo a 2ª dela com  Charles Darwin à bordo. Dura uma tarde larga e a paisagem é perturbadora. Sair para área externa da embarcação para fotografar é muito corajoso e deparei-me pensando com muita frequência como os índios conseguiam pescar, quase sem roupa naquelas canoas sem proteção? 

 Aventura em 4x4




Esse passeio é muito interessante porque contempla a ida ao centro de esqui, a vista panorâmica do lago Fagnano que divide Argentina e o Chile e o lago Escondido, encravado na cordilheira. Entre estradas de terra, rios e buracos, uma parada para um churrasco de acampamento sem nenhum luxo urbano, mas com muito sabor. E depois do almoço, para os mais animados: canoagem. Passar um tempo tomando vinho, comendo um churrasco típico argentino, descansando e ouvindo a história dos castores...ah ah!!!  É aqui que a história do castor vem à tona e passamos a persegui-lo inconscientemente por solidariedade aos habitantes de Ushuaia: Conta-se que foram trazidos 25 casais de castores para a região e futura produção de peles. 
O que aconteceu foi que o animal procria em média 4 vezes ao ano. Como nenhum predador foi convidado para fazer parte daquela incursão dos 25 casais, imaginem só a praga que se tornou na cidade: a quantidade de castores hoje é igual ou maior que a de habitantes de Ushuaia. Dá para acreditar? E não há nenhum programa de controle da espécie. Toda a flora e geografia da região foram alteradas em função da ação dos castores que provocaram derrubadas de árvores e mudança de curso de rio. Além dos Castores, as raposas (elegantes e lindas) sempre dão o ar da graça para os turistas. Tivemos o privilégio de ter uma delas próxima ao acampamento.

 A Corrida











Então, deixando um pouco de história e passeios, vamos ao motivo da viagem.... a corrida no Parque Nacional da Terra do Fogo!!!!
O local e a corrida deram um “up” na viagem, tenho que confessar. Por quê? Gente....esse é o parque mais austral do continente e a paisagem é de tirar o fôlego. Geralmente os turistas usam o Trem do Fim do Mundo para visitarem o parque, mas nosso grupo escolheu correr 10km, 21km e 42km.  Meu único arrependimento foi não ter corrido pelo menos 21km, pois deixei de ter a visão da paisagem mais dentro do parque e quem  mais se beneficiou foi o pessoal dos 42km que teve a chance de ver e sentir muito do parque.  Eu já tinha registrado aqui que a preparação foi a parte mais difícil. Agora estou com vergonha mesmo. O que são 10kms? Nada! Para uma experiência dessas eu tinha obrigação de investir mais tempo e me preparar para os 21kms. O Parque e suas belezas faria qualquer um correr muito mais e todos acharam que o percurso poderia ser maior. O corpo tinha vida própria, as pernas estavam leves e a cabeça era a parte mais tensa e intensa que queria ver e sentir tudo. Claro que não foi uma corridinha dessas e uma sensação térmica desumana que me levaria ao extremo e teste de sobrevivência, mas constatei como o corpo gera calor e produz energia em situações bem adversas. Fiquei impressionada com a resposta física. Que máquina possuo! Apaixonei! Sensações físicas à parte, cada viagem tem uma relevância e algo a ser incorporado para o resto da vida, além das experiências esperadas. Eu pensei que seria a corrida em si, mas o que foi se desenvolvendo, superou demais a corrida. Digamos que a corrida foi a GRANDE RESPONSÁVEL por colocar pessoas tão especiais num mesmo local.   Vou explicar....alguns colegas levaram seus acompanhantes (não praticantes de corrida) nessa aventura. Até aí, normal. O que aconteceu foi que esses acompanhantes deram um show de “solidariedade” com todo o grupo. Enquanto nos preparávamos para a corrida, eles se organizavam para nos fotografar e acompanhar durante o percurso. Alugaram bicicletas e se colocavam em pontos estratégicos para registrarem a corrida de todo o grupo (não só de seus acompanhantes). Gustavo, Eduardo e Eliana tornaram-se patrimônio do grupo todo!!! E o como foi bacana chegar ao final da corrida e ter alguém esperando o próximo. Foi assim até o ultimo dos 42kms, a despeito do frio  quase insuportável. Para mim, o papel desses acompanhantes na corrida foi preponderante para a forma agradável que o grupo passou a se relacionar durante todo o resto da viagem. E vamos combinar né? Como é difícil para acompanhantes se sentirem parte de um grupo tão específico (em qualquer atividade) porque nós ficamos chatos quando estamos em tribos fechadas.
E quando pensei que a experiência da corrida tinha acabado..eis que...
No meio do caminho, tinha com casamento...
É. No final dos 42km, havia um padre, um noivo e nós.
A cordilheira ao fundo, um frio desesperador e uma garrafa de Chandon. A noiva estava chegando.... Ela cruzou a linha de chegada depois de 42km. O que rolava de boca em boca? Eles se conhecem e estão juntos há 12 anos. Eles queriam casar. Eles correm juntos e ele preparou a surpresa para ela. Ela não sabia. Simples assim. Ela chegou e foi surpreendida com o padre e o noivo esperando-a. O que vi? Que parecia ser um sonho para ela se unir a ele. Mais do que um vestido, mais do que uma festa, mais do que tudo que uma noiva sonha para esse dia, era evidente que eles eram um só e que a união era para selar esse COMPANHEIRISMO imenso. Correm juntos, se conhecem a ponto dele programar uma surpresa dessas sem ter medo dela não gostar e saíram de lá juntos, suados, com frio e abraçados.   
Quanta cumplicidade num dia só! Plagiei Carlos Drummond de Andrade sem vergonha alguma...e no meio do caminho tinha um casamento...no meio do meu caminho tinha um casamento....e no Fim do Mundo..tinha um casamento...
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
  
E Ushuaia foi assim, muito de tudo: muitos encontros, muito prazer, dor de tudo quanto é lado,  amigos, corrida, beleza, história e muito vinho do Fim do Mundo. Valeu cada pedaço dessa terra e meu respeito e admiração eternos a uma história tão perdida. E dedico este post ao grupo de apaixonados pela corrida que esteve junto na maior parte do tempo e que mesmo sem se conhecer anteriormente, transformou uma experiência numa das memórias mais intensas que cataloguei para minha velhice. Ojalá um dia eu seja tão apaixonada como eles pela corrida e supere a preguiça dos 10 kms : Neslita, Danniely, Jackson e Eliana, Eduardo e Lia, Fernanda, Alessandra, Angélica, Campoi e Mildred, Filipe, Luciano e Gustavo, nosso novo amigo gaúcho, Edivan. E como disse a admirável Mildred: “entre amigos no Fim do Mundo”.
Créditos: algumas fotos publicadas no blog foram gentilmente cedidas/compartilhadas pelo grupo que estava na viagem.

Um comentário:

  1. Viagens que edificam. Não é assim que muitos se referem às viagens que saem do comum? Onde as pessoas se permitem buscar um pouco mais do que um simples passeio. Essa sim uma postagem onde se conhece um pouco mais de você. Amei!

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Agradeço seu comentário. Andrea Pires

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Andrea Pires

Com Salto&Asas é um lugar de verdade, onde compartilho as memórias das viagens que mudaram minha vida e que me transformam diariamente. Sonhar, Planejar e Realizar, o melhor caminho para ter o Mundo nas Mãos! comsaltoeasas@gmail.com

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